3.10.16

Do amor


Não querendo ser feita de salitre virei pluma, e como pluma voei, e voando abracei o vento, e já nem me importava o rumo. Eu diria que amei com o braços desde o dia em que nasci. E ainda assim, talvez os meus braços sejam a única parte do meu corpo que não me parece cansada. Abracei o silêncio, abracei a dor, abracei também o que me causava a dor. À noite, antes de dormir, abraçava a mim. Eu diria que o meu abraço é, antes de um abraço, um pedido. Um pedido de abraço. E que eu ofereço o meu pedido. E que o meu pedido não se cansa, não se basta, não se contém. Acredito ainda que o meu pedido nunca será satisfeito por completo, ele seguirá pedindo, até que já não tenha braços. Ele é bem maior do que ele mesmo. Eu diria que me perdi, por vezes, nos desejos do outro, nos prazeres do outro, no que o outro queria de mim. Então eu experimentava a sensação de ser algo, algo que faziam de mim. E fazia do sentido do outro o meu sentido, porque não tinha um sentido próprio, e fazia da certeza do outro a minha certeza, porque nunca fui capaz de tê-la. Até que um dia eu quis a mim mesma, mesmo sem sentido algum. Eu queria tudo o que eu não era como uma possibilidade infinita de existir. Eu havia descoberto a vida. Senti-me então subtraída pelo que dera como se fosse um roubo. Eu diria que não encontrei o amor, mas o reconheci. Ele estava comigo o tempo inteiro. E quando o reconheci eu tive medo, não dele, mas do que eu podia ter feito com ele quando não o reconhecia. Houve também o ensaio de um sentimento de culpa, do qual logo absolvi-me por completo. Foi então que eu descobri o quanto o amor é sábio, que ainda não reconhecido vive, e só se manifesta plenamente quando não adulterado. Que ele não gosta das apropriações, elas ferem a sua natureza. E que ainda não se manifestando plenamente, como uma presença generosa e discreta, ele não dá bom dia, ele entra e fica. E permanece lá, potencialmente pleno, pedindo para ser reconhecido. Eu diria que reconhecê-lo me salvou a vida.


[Morgana Poiesis]