29.8.13

ato-retrato II, ou Oração ao Corpo

Que coisa linda estar,
ser
meu corpo,
admiti-lo.

Coragem é uma deusa que vaga nua
sem medo de ser.

Coragem é nudez vestida de desejo,
salto na incerteza imensa do mundo,
des-cobrir amanhecer a noite ser.



"(...)
Mas tu mostrarás a curva do teu vôo
Livre, por entre os mundos...
E eles compreenderão que a alma pesa.
Que é um segundo corpo,
E mais amargo,
Porque não se pode mostrar,
Porque ninguém pode ver... " 

(Cântico XVII, Cecília Meireles)

9.8.13

o afogado mais bonito do mundo
entrou na minha casa, amansou o vento
e consertou o abismo do meu telhado
minhas portas, meu piso, meu espírito
se quedaram diante da sua boniteza
o mais alto
o mais profundo
o mais bonito afogado do mundo
tirou-me o ar, deixando-me aos suspiros,
para em seguida eu respirar melhor
e sonhar
o mais alto
o mais profundo
dos sonhos
sem âncoras
o homem
voltou para o imenso
esse imenso
ser bonito no mundo
o mais bonito do mundo.



(Um mito de García Marquez que se materializou na minha casa)

hospedo no meu quarto uma mala
feitas de mapas, bússolas
e asas.
dentro dela mora uma máscara
que não quer sair nunca...

em breve vamos viajar,
eu e a mala,
que faremos da máscara?

já nasci com o coração partido:
castor&pólux moram no meu peito,
meu signo,
passeio entre o terreno e o divino,
nunca me decido.
mas a verdade é que
eu gosto.

um rebuliço cá dentro
o coração alcança a boca:
quer alcançar o mundo,
romper o muro,
abrir a terra e o céu.
o pé a fé a pé
aponta para a porta.
minha juventude é minha roupa,
estou nua de tanta vontade.

3.8.13

m(eu)

minha
cara
confusa mulata

meu
sangue
negro rubro

meu
coração
é um corpo

minha
pele
é profunda

meu
desejo
é sagrado.

1.8.13

Cântigo Negro (José Régio)


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!